a H.
Agarrava-me ao seu braço e escondia meu
rosto em sua nuca para fugir dos horrores projetados na enorme tela do cinema,
como um menino com medo da crueldade. Já não éramos crianças, e fazia-se
necessário experimentar - no meu caso, pela primeira vez - todas as
assombrações adquirindo vida. Apesar do ato inicial de coragem, afinal, fora
minha a ideia de assistir a um filme de terror, o que presenciávamos parecia
menos pavoroso na ideia. Os resquícios de minha inocência contrastavam com a
segurança disfarçada de Heitor.
Conforme fechava os olhos, escapando por
poucos segundos de mais uma aparição assustadora – pelo som, imagino que tenha
sido um demônio exorcizado – conseguia sentir o perfume daquele forte pescoço
masculino. Apaixonado pela fragrância que eu mesmo escolhera mais cedo, como
presente para comemorar o aniversário de um ano de namoro, ia sendo tragado aos
poucos por aquele aroma. Enfiava-me cada vez mais fundo entre o encosto da
poltrona e as costas dele, não tanto pela gargalhada estridente do diabo em
pessoa, mas pelo desejo de tomar por inteiro aquele homem.
Admito, sem nenhuma modéstia, o bom
gosto da escolha, ainda que não a tenha combinado com a do filme. O perfume –
perdoem-me o cliché, mas retrato o
que, de fato, pude reter do momento – era bastante doce, com alguns traços
cítricos e portador de uma sedução devastadora. Quanto mais o sentia, mais
ansiava por misturá-lo aos cheiros de meu próprio corpo, gravá-lo em cada poro
da pele para que jamais saísse de mim. Já não escutava mais os gritos de pânico
do rapaz incorporado ou as orações entoadas aos berros por um padre que, até o
ponto em que permanecera atento, tentava pronunciá-las em latim. Nada existia
além daquela essência.
Todos os meus temores eram anulados
naqueles momentos de transe e admiração. Que deixassem a sala ainda mais
escura, que colocassem caveiras a vagar por entre as fileiras vazias –
resultado de uma sessão ao meio-dia de uma quarta-feira chuvosa -, que
povoassem as imagens de seres das trevas e de orações: nada poderia me afetar
enquanto Heitor estivesse ali a rir do meu espanto e a me dominar por inteiro
com seu novo cheiro.
Embora não visse, podia adivinhar os
seus olhares disfarçados para os cantos a fim de verificar se alguém nos
observava. Mesmo em situações normais, eu não ligaria para aquilo: como disse,
era um misto de inocência com um encantamento absurdo. De todo modo, sentia-me
protegido, aninhado quase em seu colo. Fora de mim, encontrara um outro lugar
para habitar durante a sessão. Algo de fantástico ocorria nesses minutos,
inédito e imprevisível. Assim estava muito bem e poderia ficar ainda por horas,
bêbado de eau de parfum e de Heitor.
Súbito, porém, fui acordado de meus
devaneios. Hoje, vendo os fatos com a clareza que inexistiu no dia, julgo
possível até ter dormido e sonhado, enquanto o mundo corria ao meu redor. De
qualquer maneira, as luzes e os passos dos poucos expectadores ligavam-se e
indicavam o fim das sombras. É verdade que ficamos ainda nos beijando e nos
sentindo por ainda mais alguns minutos, mas meu rosto já dizia, ainda que mudo:
chegou mesmo a hora de ir embora? Quis resistir, em vão; os faxineiros já
entravam para apagar os nossos traços.
Levantei-me ainda meio trôpego, a
contragosto, embriagado com a delícia do passeio e do perfume, mas consegui
seguir os passos de Heitor. Ele ia andando um pouco de lado, para se garantir
de que eu não tropeçaria em meus próprios pés e acabaria por cair no chão. Era
de praxe: ficava absolutamente extasiado e distraído com sua presença. O
presente apenas ressaltava o encanto que ele possuía naturalmente. Sendo assim,
acabei ainda mais decepcionado em ter de largar a mão que, antes, apertava com
tanta dedicação.
Felizmente, não fiz nenhuma vergonha e
me dirigi adequadamente até a saída da sala. Para minha surpresa, no entanto,
um estrondo atingiu-me furiosamente ao pôr o primeiro pé no outro lado. Todas
as luzes do shopping me feriam ao mesmo tempo, junto com as televisões de LED
que piscavam incessantes em uma loja de eletrodomésticos em frente ao cinema.
Cerrei os olhos, mas não era suficiente: seria preciso lacrar-me por inteiro
para sobreviver ali fora. Havia também o barulho das pessoas – de onde surgira
tanta gente? -, das conversas aos celulares, das crianças correndo e dos pais gritando
que ficassem quietas, senão vai levar um tapa no meio da cara, dos vendedores
chamando para entrar nas lojas, da música de fundo com a mesma batida
ininterrupta, do barulho dos sapatos se cruzando bem em minha frente.
Quis segurar a mão de Heitor, pará-lo
por um minuto para que não perdesse a direção, mas não o encontrei. A claridade
me cegava, é verdade, mas, conforme os contornos iam retornando, verificava que
ele não estava mais lá. Virei-me para procurá-lo, andei para todos os lados,
retornei à entrada do cinema, tentei chamá-lo pelo celular, dei voltas em torno
de mim, tentando achá-lo de qualquer maneira, sem conseguir. Escapara-se,
simplesmente. Perdido, não conseguiria cogitar a possibilidade de ele ter
decidido ir embora, de ter me deixado ali.
Obcecado em localizá-lo, decidi
perguntar aos transeuntes impassíveis se haviam o visto. Muitos, porém,
passavam rápidos sem ao menos me notar, e eu ia perdendo sucessivas chances de
abordá-los. Não sei por quanto tempo permaneci nesse estágio de impossibilidade.
Talvez poucos minutos, algumas horas ou a vida inteira. Algo parecido com o
medo - um presságio maldito - imobilizava cada parte de mim. Observava estático
o turbilhão inesgotável de consumidores se arrastarem pelos corredores do
shopping.
Tive uma esperança quando um casal parou
ao meu lado para sonhar com as roupas do bebê ainda protegido no ventre da
mulher. Nasceria em breve, prematuro, incompleto ainda - pude sentir. Quase ri
com esse pensamento: estava agindo como os oráculos que nunca pude acreditar.
Além disso, eram evidentes os vazios dos nascimentos, das vidas e das mortes.
Aquele bebê em nada seria diferente de mim - de todos -, igualmente acometido
pelo acaso de sua existência.
Meu surpreendente misticismo e a
igualdade completa no absurdo do mundo me encheram de coragem e calaram meu
pavor. Eram duas pessoas como eu, eram duas pessoas como eu esperando,
aguardando ansiosos um motivo. Dirigi-me até eles e pude reparar que não eram
muito mais velhos. Se não transcrevo em um organizado travessão o que perguntei
é pelo espanto seguinte à minha fala. As palavras saíram em branco de minha
memória agora cheia de dúvidas e embaralhada. Sei apenas que descrevi Heitor e
indaguei por ele. A resposta me assustou como nunca imaginei ser possível.
O casal encerrou os sorrisos e
puseram-se a contorcer as expressões do rosto. Passavam mal assombrosamente.
Sem ar, tossiam e esganavam para tentar expelir algo da garganta. O rosto
começava a adquirir tons de roxo e suas pernas ameaçavam fraquejar. Tive a impressão
de que estavam prestes a se desfazerem e quebrarem, caídos no piso do shopping.
Gritei por ajuda, mas ninguém me ouviu. Tentei uma, três, cinco, dez vezes, nos
limites da voz, sem despertar a atenção dos que compravam nas lojas ao lado.
O homem parecia engasgar-se nos próprios
catarros e seus olhos esbugalhados começavam a perder o foco. Morriam ao meu
lado, enquanto berrava por ajuda sem, por alguma razão, tentar eu mesmo
tocá-los. Tive pânico de ficar como eles, supondo que aquele poderia ser meu destino.
Quando já sentia culpa pela minha paralisia, alguém reparou nos dois e correu
para socorrê-los. Um segurança, inicialmente, depois outro, mais outro, uma
senhora que se descontrolava, ela tá grávida, ajuda aqui, e logo uma multidão a
cercá-los.
Tentei explicar o que acontecera, ainda
que eu também desconhecesse as causas, mas nenhum deles parecia capaz de me ver
ou ouvir. Mudei de posição, empurrei-os, pulei em frente a seus olhos, esgotado
e cada vez mais perdido - em vão. Estava completamente invisível àquelas
pessoas. Completamente mudo, esquecido, invisualizável. Chorei, então, pela
primeira vez naquele dia.
O casal melhorava à medida que era
levado para longe, a julgar pelo fim dos espasmos e pelo gradual retorno à cor
normal. Se isso me aliviou por um momento, logo me vi novamente em minha
própria história de terror. As pessoas ao meu redor passaram a apresentar os
mesmos sintomas. Em pouco tempo, fui rodeado por gente que escarrava sangue,
caía no chão convulsionada, vomitava nos próprios pés, dizia palavras estranhas
marcadas pela raiva. Foi nesse ponto que consegui ouvir um deles, um senhor na
casa dos sessenta anos, ofegar:
- Esse perfume!
Senti, então, o cheiro de Heitor que
estava impregnado em mim. Poderia dizer, sem medo de errar, que já não era
apenas dele aquela fragrância. Desesperavam-se com o que vinha de mim, de nós
dois. Relegado à infiguração, observei o cenário catastrófico: eram poucos,
raros, os que nada sentiam e se indagavam de que perfume o velho estaria
falando. Um outro homem, a princípio não afetado, correu para chamar
ambulâncias e reclamar com a gerência do shopping o fétido odor que estava
destruindo a todos ali. Exigiria que evacuassem cada loja, cada canto, para
evitar que aquilo se espalhasse.
Afastei-me. Fui andando contra o fluxo
desesperado de consumidores que buscavam a saída mais próxima, tapando as
narinas e os olhos de suas crianças. Não era necessário: estava invisível, e
Heitor fora da minha mão vacilante. Mirava seus rostos assustados, mas plenos
de raiva e não podia deixar de temê-los. O que fariam se conseguissem nos ver?
Segui um caminho qualquer, sem direção,
enquanto o shopping se tornava deserto. Tudo estava fechado. Passei por uma
loja de espelhos e não consegui me encontrar em nenhum reflexo exposto na
vitrine. Tudo estava vazio. Segui perdido sem saber se fora preso em miragens
ou em páginas de alguma literatura fadada ao desconhecido. Tanto fazia: tudo
inexistia.
As luzes iam se apagando e logo estava
protegido pela escuridão total. Tentar enxergar não valia de nada: confundia-me
com o fundo de sombra. Pressentia, porém, em mais uma profecia desértica de
falso oráculo que tudo aquilo teria um fim. Talvez acertasse – talvez não.
Fechei os olhos como quem desiste de pensar. Senti o nosso perfume e Heitor
novamente comigo. Agarrei-me ao seu braço e escondi meu rosto em sua nuca para
fugir dos horrores projetados na enorme tela do cinema, como um menino com medo
da crueldade.
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