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A
composição abafada do metrô range suas unhas nos trilhos de ferro da estação e
chegam gritando cada um de seus vagões. A porta também berra ao ser aberta e a
multidão, por todos os lados, me joga para dentro, disputando o último banco
vago. Em poucos segundos, o vazio se preenche sem espaços: fico amassado num
canto. Esmagado entre uma mulher flácida e um sessentão, que a olha
indiscretamente, sumo engolido por corpos das mais diversas formas. Não são nem
sete horas da manhã e o dia promete bater os trinta e nove graus. Sinto,
amarrado dentro do terno comprado em uma promoção, o suor se arrastar pelas
minhas costas e sumir no cinto da calça social. Ouço, como se estivessem
gritando em meu ouvido, duas mulheres discutirem por um lugar, um homem pregar
com as mãos pro alto – como será que ele consegue se movimentar, meu deus? -,
uma criança chorar: não quer ir à aula, a mãe ralha - barulho em todas as
partes. Chegamos à Central, mais gente entra, se esmaga, minha mochila explode
entre minhas pernas, no chão. Só consigo enxergar os braços que tentam alcançar
o ferro para se segurarem, como se isso fosse necessário. Corpos sufocados em
roupas justas, que se tocam, roçam, dominam. Consigo perceber as formas das
coxas de um homem grisalho à minha direita, de tão colados que estamos – cada
um dos seus movimentos me afeta bruscamente. Ele me olha sem desviar,
encara-me, sem que eu saiba o motivo. Na sua mão, uma aliança; na carteira,
provavelmente, a identidade de um pai. Sua presença é cada vez mais
intolerável. Fecho os olhos, cansado e com medo de ter um ataque de pânico –
por onde vou sair, por onde vou sair, por onde vou sair? Todo dia o mesmo dia,
dia de hoje dia de ontem, dia de dia, dia a dia. Perco a direção, não sei mais
se vou ou se volto. Ouço comentarem que um rapaz se jogou agora há pouco a
quatro estações dali. Dois estudantes confirmam a notícia vendo uma rede social
pelo tablet. O metrô para, aguardando
a liberação da via. Alguém reclama a demora, vão perder a hora do trabalho, a
hora do almoço, a hora do lanche, a hora da janta, a hora do sono, a hora do
metrô, a hora do trabalho. Começam a falar mais alto e, insuportável, o som
invade meu corpo cada vez mais enlatado. Volta a movimentação – já devem ter
tirado o corpo, mais um desses doidos sem ter o que fazer, não é, meu filho? –,
ignoro. Se falo, se aponto, se piso nos calos, deixam-me em cacos, então, caio
em mim, calado. Não apareço na foto que uma moça tira para enviar a algum
jornal o absurdo de todos os dias – sou o camaleão de mim. Súbito, um espaço
surge à direita e um ar abafado entra no vagão: alguém saiu e a porta se abriu.
Abro os olhos e escapo. Por pouco não tropeço no vão da plataforma, mas me
salvo, enfim.
Localizo-me:
estou na Cinelândia. Não há metade das pessoas dentro do vagão, então, respiro
aliviado. Resolvo me sentar num banco para descansar, não importando mais a
hora que marca um relógio ao lado. Chegaria atrasado ao trabalho, mas
provavelmente não perceberiam até precisar do “novo estagiário”. Se estivessem
muito necessitados, colocariam outro em meu lugar, afinal, este era o lema: se
não fizer, acharemos quem faça, e mais barato.
De
repente, quase pulo de susto. Em fúria, o celular vibra no bolso da calça. É de
tal maneira intenso que, tal como um terremoto, tudo parece estremecer junto.
Talvez seja mesmo o movimento de uma placa tectônica a se chocar com a da minha
vida. Intuo, inocente, que já sentem minha ausência - me engano. Observo visor
do smartphone sem entender de
imediato.
Um
ícone amarelo e preto brilha na tela principal, ao lado do despertador e do
calendário. Não o reconheço e clico, sem saber o que esperar. Sei que as
pessoas costumam ter muitos aplicativos, baixá-los com muita frequência, mas
não é meu caso. Abre, finalmente, e me deixa ainda mais confuso. Debruço-me
sobre o aparelho para tentar decifrá-lo.
Trata-se
de um jogo que um dia resolvi experimentar, mas que havia deletado para sempre.
Dava-me enjoo pela quantidade de movimentos, irritação por quase sempre não ter
com quem jogar, além do fato de conhecer mal as regras e estar sempre prestes a
ser vencido. Persisti em jogá-lo por um longo período, mas longe de qualquer
conhecido. De todo modo, nunca ia até o fim das partidas.
Além
disso, para funcionar, outro usuário precisava estar por perto com o aparelho
ligado. Caso alguém do trabalho o tivesse também – ou um vizinho - eu acabaria
constrangido. Estava, na maioria das vezes, protegido, pois sempre foi raro
encontrar alguém com ele instalado, o que diminuía as vergonhas da desistência,
embora as fizesse inesquecíveis.
É
um jogo de luta, em que cada participante cria um personagem para duelar com o
do outro. Agora indica que existe alguém há pelo menos uma hora mantendo-se
próximo a mim e querendo combater. Isso significa dizer que está num raio de
distância bastante próximo desde que peguei o metrô. E ainda permanece... 110
passos a nos separar, pelo que marca o aplicativo. Como eu, mantém-se anônimo e
sem rosto. Talvez possa conversar um pouco pelo chat. Curioso, aceito a partida.
Nada
acontece. A tela permanece a mesma de antes, apenas indicando o que nos separa.
O contador de passos segue inalterado. Olho ao meu redor e me assombro: não há
outra alma viva na estação. Não existe outra pessoa aqui, apenas eu, as imagens
dos pontos turísticos da Cinelândia da superfície, a escada rolante a subir sem
passageiros e os trilhos mudos do metrô. Silêncio e imobilidade invadem cada
canto deste cenário.
O
celular vibra novamente, desta vez entre minhas mãos, como quem deseja que eu
faça alguma coisa. Aperto um botão qualquer, ao acaso - ou talvez seja minha
memória dizendo ser um dos golpes - e a tela se transforma. Surge agora uma
imagem que me arrepia. Vejo a mim mesmo sentado neste banco, como a gravação de
uma câmera ao vivo. Há, porém, um detalhe: não apareço sozinho.
O
mesmo homem grisalho do vagão me observa no jogo e começa a se movimentar. O
contador de passos vai, gradualmente, diminuindo os números marcados até zerar.
No celular, ele está em minha frente; na realidade, não há nada. Toma a palavra
e pergunta algo que não consigo decifrar, ainda que me veja responder na
imagem. Isso não pode ser de verdade: estou mudo e não enxergo ninguém.
Fico
a observar a conversa por longos minutos - coração aos pulos - até que começam
a se movimentarem (ou seria melhor dizer começamos a nos movimentarmos?). O
contador aumenta aos poucos e logo ultrapassa os 400 passos. A princípio,
vejo-os indo embora, com medo de segui-los. Se sinto que devo permanecer
parado, sem agir, também desejo saber para onde vão. A tentação é grande e
cedo. Levanto-me do banco, diminuindo novamente a distância dos passos.
Erro
o caminho, busco rotas, conforme o contador vai mostrando, quase em um jogo de
"quente ou frio". Na tela, não os enxergo, embora pressinta que logo
estarei diante deles - ou seria de mim? Subo escadas, faço curvas, hesito, tomo
outro lado, como se estivesse preso em um labirinto. Chego, enfim, em frente a
uma porta, atrás da qual parecem estar. Estou gelado e receoso. E se o que vir
me cegar, como a Édipo? Não, eu não mataria Laio, e Jocasta está longe para
vigiar. Ainda é cedo para desistir. Abro a porta com um pequeno toque. O mundo
range.
Lá
dentro é pouco iluminado, o que me deixa, combinado com a solidão, apavorado.
Entro, comandado por algo superior à minha razão. Trata-se de um banheiro.
Atiro meus olhos sobre a tela do celular e acompanho o assustador jogo se
desenrolar exatamente onde estou. O homem grisalho puxa-me para si, anulando
qualquer uma de minhas defesas. Joga-me onde bem quer, para meu prazer e
desespero, sem se importar em não deixar marcas em minha pele. Quero lutar:
aperto mais botões. Em vão. Minha imagem ignora totalmente minha razão e se
deixa entregar. Não somos, afinal, máquinas nas quais basta acionar comandos
para controlar. O outro de mim vive na tela mais que eu.
O
homem grisalho me subjuga, me beija e sussurra palavras cujo sentido só entendo
com os olhos entreabertos. Loucos, fechamo-nos em uma cabine para sentir melhor
a carne que a mão segura. Tremo vendo a mim mesmo em tal estado. Aciono comandos
para que tudo se encerre, ordens que não haviam falhado em outras situações.
Agora, contudo, já não há mais como reverter: aceito ser dominado para, nesse
instante de quase morte, adquirir vida. Urro e não sei quais tons são de dor e
de prazer. Os olhos revirados e os dedos apertando as costas nuas daquele homem
grande já dão a resposta.
Choro,
tanto na imagem quanto fora dela, e já não sei qual é real. Deixo as lágrimas
caírem, sem desejar definir se de júbilo ou agonia. O grito derradeiro chega
para dar fim à minha vida. Assisto ao homem grisalho subir suas calças e a me
acariciar carinhosamente no rosto. Seus passos se distanciam, para sempre.
Observo-me, sorriso torto nas pernas, encostado à parede sem equilíbrio. Minha
felicidade é tão evidente e inacreditável que me assusta mais que um encontro
com Deus.
Vejo
esse outro de mim se recompor e lavar o rosto na pia do banheiro. Olha-se no
espelho, como se estivesse se vendo pela primeira vez. Acompanho cada um de
seus passos. Ao abrirmos a porta, o turbilhão de barulhos nos invadem de novo,
exigindo nosso silêncio e segredo. Viro a cabeça para todos os lados e encontro
em cada face uma acusação irrefutável. Minha imagem na tela, entretanto, vai
tranquila e em paz pela plataforma. Sigo-a.
Sinto
raiva, quero acusá-la de não me ter obedecido, de não ter resistido, de se ter
acovardado. Não consigo a tempo. O metrô chega e me vejo tomar o caminho
inverso ao grande fluxo, como de volta para casa ou, quem sabe, para outro
destino. Talvez ainda me escutasse em outros momentos, nos quais hesitaria,
teria pavor e sofreria. Qual de nós seria real? Algo já estava claro: começava
a ser livre de mim.
Presencio
os vagões se afastarem, levando consigo aquele meu outro. Sofro agora
inteiramente sozinho e derrotado. Não há mais controle, não há mais fuga, não
há mais como voltar. Aquele do subsolo ainda está sob a terra, mas logo
atingirá a superfície do mundo sobre o qual será seu próprio senhor um dia.
Ainda tenho o poder de incomodá-lo, mas já está tudo feito. Que sofra menos
agora, decido-me.
A
composição abafada do metrô range suas unhas nos trilhos de ferro da estação e
chegam gritando cada um de seus vagões. A porta também berra ao ser aberta e a
multidão, por todos os lados, me joga para dentro, disputando o último banco
vago. Resolvo não aceitar. Empurro-os e saio de lá. Vejo as portas se fecharem
e partirem. Sinto apenas liberdade ao me jogar nos trilhos da estação.