quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O JOGO

a H

A composição abafada do metrô range suas unhas nos trilhos de ferro da estação e chegam gritando cada um de seus vagões. A porta também berra ao ser aberta e a multidão, por todos os lados, me joga para dentro, disputando o último banco vago. Em poucos segundos, o vazio se preenche sem espaços: fico amassado num canto. Esmagado entre uma mulher flácida e um sessentão, que a olha indiscretamente, sumo engolido por corpos das mais diversas formas. Não são nem sete horas da manhã e o dia promete bater os trinta e nove graus. Sinto, amarrado dentro do terno comprado em uma promoção, o suor se arrastar pelas minhas costas e sumir no cinto da calça social. Ouço, como se estivessem gritando em meu ouvido, duas mulheres discutirem por um lugar, um homem pregar com as mãos pro alto – como será que ele consegue se movimentar, meu deus? -, uma criança chorar: não quer ir à aula, a mãe ralha - barulho em todas as partes. Chegamos à Central, mais gente entra, se esmaga, minha mochila explode entre minhas pernas, no chão. Só consigo enxergar os braços que tentam alcançar o ferro para se segurarem, como se isso fosse necessário. Corpos sufocados em roupas justas, que se tocam, roçam, dominam. Consigo perceber as formas das coxas de um homem grisalho à minha direita, de tão colados que estamos – cada um dos seus movimentos me afeta bruscamente. Ele me olha sem desviar, encara-me, sem que eu saiba o motivo. Na sua mão, uma aliança; na carteira, provavelmente, a identidade de um pai. Sua presença é cada vez mais intolerável. Fecho os olhos, cansado e com medo de ter um ataque de pânico – por onde vou sair, por onde vou sair, por onde vou sair? Todo dia o mesmo dia, dia de hoje dia de ontem, dia de dia, dia a dia. Perco a direção, não sei mais se vou ou se volto. Ouço comentarem que um rapaz se jogou agora há pouco a quatro estações dali. Dois estudantes confirmam a notícia vendo uma rede social pelo tablet. O metrô para, aguardando a liberação da via. Alguém reclama a demora, vão perder a hora do trabalho, a hora do almoço, a hora do lanche, a hora da janta, a hora do sono, a hora do metrô, a hora do trabalho. Começam a falar mais alto e, insuportável, o som invade meu corpo cada vez mais enlatado. Volta a movimentação – já devem ter tirado o corpo, mais um desses doidos sem ter o que fazer, não é, meu filho? –, ignoro. Se falo, se aponto, se piso nos calos, deixam-me em cacos, então, caio em mim, calado. Não apareço na foto que uma moça tira para enviar a algum jornal o absurdo de todos os dias – sou o camaleão de mim. Súbito, um espaço surge à direita e um ar abafado entra no vagão: alguém saiu e a porta se abriu. Abro os olhos e escapo. Por pouco não tropeço no vão da plataforma, mas me salvo, enfim.
Localizo-me: estou na Cinelândia. Não há metade das pessoas dentro do vagão, então, respiro aliviado. Resolvo me sentar num banco para descansar, não importando mais a hora que marca um relógio ao lado. Chegaria atrasado ao trabalho, mas provavelmente não perceberiam até precisar do “novo estagiário”. Se estivessem muito necessitados, colocariam outro em meu lugar, afinal, este era o lema: se não fizer, acharemos quem faça, e mais barato.
De repente, quase pulo de susto. Em fúria, o celular vibra no bolso da calça. É de tal maneira intenso que, tal como um terremoto, tudo parece estremecer junto. Talvez seja mesmo o movimento de uma placa tectônica a se chocar com a da minha vida. Intuo, inocente, que já sentem minha ausência - me engano. Observo visor do smartphone sem entender de imediato.
Um ícone amarelo e preto brilha na tela principal, ao lado do despertador e do calendário. Não o reconheço e clico, sem saber o que esperar. Sei que as pessoas costumam ter muitos aplicativos, baixá-los com muita frequência, mas não é meu caso. Abre, finalmente, e me deixa ainda mais confuso. Debruço-me sobre o aparelho para tentar decifrá-lo.
Trata-se de um jogo que um dia resolvi experimentar, mas que havia deletado para sempre. Dava-me enjoo pela quantidade de movimentos, irritação por quase sempre não ter com quem jogar, além do fato de conhecer mal as regras e estar sempre prestes a ser vencido. Persisti em jogá-lo por um longo período, mas longe de qualquer conhecido. De todo modo, nunca ia até o fim das partidas.
Além disso, para funcionar, outro usuário precisava estar por perto com o aparelho ligado. Caso alguém do trabalho o tivesse também – ou um vizinho - eu acabaria constrangido. Estava, na maioria das vezes, protegido, pois sempre foi raro encontrar alguém com ele instalado, o que diminuía as vergonhas da desistência, embora as fizesse inesquecíveis.
É um jogo de luta, em que cada participante cria um personagem para duelar com o do outro. Agora indica que existe alguém há pelo menos uma hora mantendo-se próximo a mim e querendo combater. Isso significa dizer que está num raio de distância bastante próximo desde que peguei o metrô. E ainda permanece... 110 passos a nos separar, pelo que marca o aplicativo. Como eu, mantém-se anônimo e sem rosto. Talvez possa conversar um pouco pelo chat. Curioso, aceito a partida.
Nada acontece. A tela permanece a mesma de antes, apenas indicando o que nos separa. O contador de passos segue inalterado. Olho ao meu redor e me assombro: não há outra alma viva na estação. Não existe outra pessoa aqui, apenas eu, as imagens dos pontos turísticos da Cinelândia da superfície, a escada rolante a subir sem passageiros e os trilhos mudos do metrô. Silêncio e imobilidade invadem cada canto deste cenário.
O celular vibra novamente, desta vez entre minhas mãos, como quem deseja que eu faça alguma coisa. Aperto um botão qualquer, ao acaso - ou talvez seja minha memória dizendo ser um dos golpes - e a tela se transforma. Surge agora uma imagem que me arrepia. Vejo a mim mesmo sentado neste banco, como a gravação de uma câmera ao vivo. Há, porém, um detalhe: não apareço sozinho.
O mesmo homem grisalho do vagão me observa no jogo e começa a se movimentar. O contador de passos vai, gradualmente, diminuindo os números marcados até zerar. No celular, ele está em minha frente; na realidade, não há nada. Toma a palavra e pergunta algo que não consigo decifrar, ainda que me veja responder na imagem. Isso não pode ser de verdade: estou mudo e não enxergo ninguém.
Fico a observar a conversa por longos minutos - coração aos pulos - até que começam a se movimentarem (ou seria melhor dizer começamos a nos movimentarmos?). O contador aumenta aos poucos e logo ultrapassa os 400 passos. A princípio, vejo-os indo embora, com medo de segui-los. Se sinto que devo permanecer parado, sem agir, também desejo saber para onde vão. A tentação é grande e cedo. Levanto-me do banco, diminuindo novamente a distância dos passos.
Erro o caminho, busco rotas, conforme o contador vai mostrando, quase em um jogo de "quente ou frio". Na tela, não os enxergo, embora pressinta que logo estarei diante deles - ou seria de mim? Subo escadas, faço curvas, hesito, tomo outro lado, como se estivesse preso em um labirinto. Chego, enfim, em frente a uma porta, atrás da qual parecem estar. Estou gelado e receoso. E se o que vir me cegar, como a Édipo? Não, eu não mataria Laio, e Jocasta está longe para vigiar. Ainda é cedo para desistir. Abro a porta com um pequeno toque. O mundo range.
Lá dentro é pouco iluminado, o que me deixa, combinado com a solidão, apavorado. Entro, comandado por algo superior à minha razão. Trata-se de um banheiro. Atiro meus olhos sobre a tela do celular e acompanho o assustador jogo se desenrolar exatamente onde estou. O homem grisalho puxa-me para si, anulando qualquer uma de minhas defesas. Joga-me onde bem quer, para meu prazer e desespero, sem se importar em não deixar marcas em minha pele. Quero lutar: aperto mais botões. Em vão. Minha imagem ignora totalmente minha razão e se deixa entregar. Não somos, afinal, máquinas nas quais basta acionar comandos para controlar. O outro de mim vive na tela mais que eu.
O homem grisalho me subjuga, me beija e sussurra palavras cujo sentido só entendo com os olhos entreabertos. Loucos, fechamo-nos em uma cabine para sentir melhor a carne que a mão segura. Tremo vendo a mim mesmo em tal estado. Aciono comandos para que tudo se encerre, ordens que não haviam falhado em outras situações. Agora, contudo, já não há mais como reverter: aceito ser dominado para, nesse instante de quase morte, adquirir vida. Urro e não sei quais tons são de dor e de prazer. Os olhos revirados e os dedos apertando as costas nuas daquele homem grande já dão a resposta.
Choro, tanto na imagem quanto fora dela, e já não sei qual é real. Deixo as lágrimas caírem, sem desejar definir se de júbilo ou agonia. O grito derradeiro chega para dar fim à minha vida. Assisto ao homem grisalho subir suas calças e a me acariciar carinhosamente no rosto. Seus passos se distanciam, para sempre. Observo-me, sorriso torto nas pernas, encostado à parede sem equilíbrio. Minha felicidade é tão evidente e inacreditável que me assusta mais que um encontro com Deus.
Vejo esse outro de mim se recompor e lavar o rosto na pia do banheiro. Olha-se no espelho, como se estivesse se vendo pela primeira vez. Acompanho cada um de seus passos. Ao abrirmos a porta, o turbilhão de barulhos nos invadem de novo, exigindo nosso silêncio e segredo. Viro a cabeça para todos os lados e encontro em cada face uma acusação irrefutável. Minha imagem na tela, entretanto, vai tranquila e em paz pela plataforma. Sigo-a.
Sinto raiva, quero acusá-la de não me ter obedecido, de não ter resistido, de se ter acovardado. Não consigo a tempo. O metrô chega e me vejo tomar o caminho inverso ao grande fluxo, como de volta para casa ou, quem sabe, para outro destino. Talvez ainda me escutasse em outros momentos, nos quais hesitaria, teria pavor e sofreria. Qual de nós seria real? Algo já estava claro: começava a ser livre de mim.
Presencio os vagões se afastarem, levando consigo aquele meu outro. Sofro agora inteiramente sozinho e derrotado. Não há mais controle, não há mais fuga, não há mais como voltar. Aquele do subsolo ainda está sob a terra, mas logo atingirá a superfície do mundo sobre o qual será seu próprio senhor um dia. Ainda tenho o poder de incomodá-lo, mas já está tudo feito. Que sofra menos agora, decido-me.

A composição abafada do metrô range suas unhas nos trilhos de ferro da estação e chegam gritando cada um de seus vagões. A porta também berra ao ser aberta e a multidão, por todos os lados, me joga para dentro, disputando o último banco vago. Resolvo não aceitar. Empurro-os e saio de lá. Vejo as portas se fecharem e partirem. Sinto apenas liberdade ao me jogar nos trilhos da estação.

O PERFUME


a H.

Agarrava-me ao seu braço e escondia meu rosto em sua nuca para fugir dos horrores projetados na enorme tela do cinema, como um menino com medo da crueldade. Já não éramos crianças, e fazia-se necessário experimentar - no meu caso, pela primeira vez - todas as assombrações adquirindo vida. Apesar do ato inicial de coragem, afinal, fora minha a ideia de assistir a um filme de terror, o que presenciávamos parecia menos pavoroso na ideia. Os resquícios de minha inocência contrastavam com a segurança disfarçada de Heitor.
Conforme fechava os olhos, escapando por poucos segundos de mais uma aparição assustadora – pelo som, imagino que tenha sido um demônio exorcizado – conseguia sentir o perfume daquele forte pescoço masculino. Apaixonado pela fragrância que eu mesmo escolhera mais cedo, como presente para comemorar o aniversário de um ano de namoro, ia sendo tragado aos poucos por aquele aroma. Enfiava-me cada vez mais fundo entre o encosto da poltrona e as costas dele, não tanto pela gargalhada estridente do diabo em pessoa, mas pelo desejo de tomar por inteiro aquele homem.
Admito, sem nenhuma modéstia, o bom gosto da escolha, ainda que não a tenha combinado com a do filme. O perfume – perdoem-me o cliché, mas retrato o que, de fato, pude reter do momento – era bastante doce, com alguns traços cítricos e portador de uma sedução devastadora. Quanto mais o sentia, mais ansiava por misturá-lo aos cheiros de meu próprio corpo, gravá-lo em cada poro da pele para que jamais saísse de mim. Já não escutava mais os gritos de pânico do rapaz incorporado ou as orações entoadas aos berros por um padre que, até o ponto em que permanecera atento, tentava pronunciá-las em latim. Nada existia além daquela essência.
Todos os meus temores eram anulados naqueles momentos de transe e admiração. Que deixassem a sala ainda mais escura, que colocassem caveiras a vagar por entre as fileiras vazias – resultado de uma sessão ao meio-dia de uma quarta-feira chuvosa -, que povoassem as imagens de seres das trevas e de orações: nada poderia me afetar enquanto Heitor estivesse ali a rir do meu espanto e a me dominar por inteiro com seu novo cheiro.
Embora não visse, podia adivinhar os seus olhares disfarçados para os cantos a fim de verificar se alguém nos observava. Mesmo em situações normais, eu não ligaria para aquilo: como disse, era um misto de inocência com um encantamento absurdo. De todo modo, sentia-me protegido, aninhado quase em seu colo. Fora de mim, encontrara um outro lugar para habitar durante a sessão. Algo de fantástico ocorria nesses minutos, inédito e imprevisível. Assim estava muito bem e poderia ficar ainda por horas, bêbado de eau de parfum e de Heitor.
Súbito, porém, fui acordado de meus devaneios. Hoje, vendo os fatos com a clareza que inexistiu no dia, julgo possível até ter dormido e sonhado, enquanto o mundo corria ao meu redor. De qualquer maneira, as luzes e os passos dos poucos expectadores ligavam-se e indicavam o fim das sombras. É verdade que ficamos ainda nos beijando e nos sentindo por ainda mais alguns minutos, mas meu rosto já dizia, ainda que mudo: chegou mesmo a hora de ir embora? Quis resistir, em vão; os faxineiros já entravam para apagar os nossos traços.
Levantei-me ainda meio trôpego, a contragosto, embriagado com a delícia do passeio e do perfume, mas consegui seguir os passos de Heitor. Ele ia andando um pouco de lado, para se garantir de que eu não tropeçaria em meus próprios pés e acabaria por cair no chão. Era de praxe: ficava absolutamente extasiado e distraído com sua presença. O presente apenas ressaltava o encanto que ele possuía naturalmente. Sendo assim, acabei ainda mais decepcionado em ter de largar a mão que, antes, apertava com tanta dedicação.
Felizmente, não fiz nenhuma vergonha e me dirigi adequadamente até a saída da sala. Para minha surpresa, no entanto, um estrondo atingiu-me furiosamente ao pôr o primeiro pé no outro lado. Todas as luzes do shopping me feriam ao mesmo tempo, junto com as televisões de LED que piscavam incessantes em uma loja de eletrodomésticos em frente ao cinema. Cerrei os olhos, mas não era suficiente: seria preciso lacrar-me por inteiro para sobreviver ali fora. Havia também o barulho das pessoas – de onde surgira tanta gente? -, das conversas aos celulares, das crianças correndo e dos pais gritando que ficassem quietas, senão vai levar um tapa no meio da cara, dos vendedores chamando para entrar nas lojas, da música de fundo com a mesma batida ininterrupta, do barulho dos sapatos se cruzando bem em minha frente.
Quis segurar a mão de Heitor, pará-lo por um minuto para que não perdesse a direção, mas não o encontrei. A claridade me cegava, é verdade, mas, conforme os contornos iam retornando, verificava que ele não estava mais lá. Virei-me para procurá-lo, andei para todos os lados, retornei à entrada do cinema, tentei chamá-lo pelo celular, dei voltas em torno de mim, tentando achá-lo de qualquer maneira, sem conseguir. Escapara-se, simplesmente. Perdido, não conseguiria cogitar a possibilidade de ele ter decidido ir embora, de ter me deixado ali.
Obcecado em localizá-lo, decidi perguntar aos transeuntes impassíveis se haviam o visto. Muitos, porém, passavam rápidos sem ao menos me notar, e eu ia perdendo sucessivas chances de abordá-los. Não sei por quanto tempo permaneci nesse estágio de impossibilidade. Talvez poucos minutos, algumas horas ou a vida inteira. Algo parecido com o medo - um presságio maldito - imobilizava cada parte de mim. Observava estático o turbilhão inesgotável de consumidores se arrastarem pelos corredores do shopping.
Tive uma esperança quando um casal parou ao meu lado para sonhar com as roupas do bebê ainda protegido no ventre da mulher. Nasceria em breve, prematuro, incompleto ainda - pude sentir. Quase ri com esse pensamento: estava agindo como os oráculos que nunca pude acreditar. Além disso, eram evidentes os vazios dos nascimentos, das vidas e das mortes. Aquele bebê em nada seria diferente de mim - de todos -, igualmente acometido pelo acaso de sua existência.
Meu surpreendente misticismo e a igualdade completa no absurdo do mundo me encheram de coragem e calaram meu pavor. Eram duas pessoas como eu, eram duas pessoas como eu esperando, aguardando ansiosos um motivo. Dirigi-me até eles e pude reparar que não eram muito mais velhos. Se não transcrevo em um organizado travessão o que perguntei é pelo espanto seguinte à minha fala. As palavras saíram em branco de minha memória agora cheia de dúvidas e embaralhada. Sei apenas que descrevi Heitor e indaguei por ele. A resposta me assustou como nunca imaginei ser possível.
O casal encerrou os sorrisos e puseram-se a contorcer as expressões do rosto. Passavam mal assombrosamente. Sem ar, tossiam e esganavam para tentar expelir algo da garganta. O rosto começava a adquirir tons de roxo e suas pernas ameaçavam fraquejar. Tive a impressão de que estavam prestes a se desfazerem e quebrarem, caídos no piso do shopping. Gritei por ajuda, mas ninguém me ouviu. Tentei uma, três, cinco, dez vezes, nos limites da voz, sem despertar a atenção dos que compravam nas lojas ao lado.
O homem parecia engasgar-se nos próprios catarros e seus olhos esbugalhados começavam a perder o foco. Morriam ao meu lado, enquanto berrava por ajuda sem, por alguma razão, tentar eu mesmo tocá-los. Tive pânico de ficar como eles, supondo que aquele poderia ser meu destino. Quando já sentia culpa pela minha paralisia, alguém reparou nos dois e correu para socorrê-los. Um segurança, inicialmente, depois outro, mais outro, uma senhora que se descontrolava, ela tá grávida, ajuda aqui, e logo uma multidão a cercá-los.
Tentei explicar o que acontecera, ainda que eu também desconhecesse as causas, mas nenhum deles parecia capaz de me ver ou ouvir. Mudei de posição, empurrei-os, pulei em frente a seus olhos, esgotado e cada vez mais perdido - em vão. Estava completamente invisível àquelas pessoas. Completamente mudo, esquecido, invisualizável. Chorei, então, pela primeira vez naquele dia.
O casal melhorava à medida que era levado para longe, a julgar pelo fim dos espasmos e pelo gradual retorno à cor normal. Se isso me aliviou por um momento, logo me vi novamente em minha própria história de terror. As pessoas ao meu redor passaram a apresentar os mesmos sintomas. Em pouco tempo, fui rodeado por gente que escarrava sangue, caía no chão convulsionada, vomitava nos próprios pés, dizia palavras estranhas marcadas pela raiva. Foi nesse ponto que consegui ouvir um deles, um senhor na casa dos sessenta anos, ofegar:
- Esse perfume!
Senti, então, o cheiro de Heitor que estava impregnado em mim. Poderia dizer, sem medo de errar, que já não era apenas dele aquela fragrância. Desesperavam-se com o que vinha de mim, de nós dois. Relegado à infiguração, observei o cenário catastrófico: eram poucos, raros, os que nada sentiam e se indagavam de que perfume o velho estaria falando. Um outro homem, a princípio não afetado, correu para chamar ambulâncias e reclamar com a gerência do shopping o fétido odor que estava destruindo a todos ali. Exigiria que evacuassem cada loja, cada canto, para evitar que aquilo se espalhasse.
Afastei-me. Fui andando contra o fluxo desesperado de consumidores que buscavam a saída mais próxima, tapando as narinas e os olhos de suas crianças. Não era necessário: estava invisível, e Heitor fora da minha mão vacilante. Mirava seus rostos assustados, mas plenos de raiva e não podia deixar de temê-los. O que fariam se conseguissem nos ver?
Segui um caminho qualquer, sem direção, enquanto o shopping se tornava deserto. Tudo estava fechado. Passei por uma loja de espelhos e não consegui me encontrar em nenhum reflexo exposto na vitrine. Tudo estava vazio. Segui perdido sem saber se fora preso em miragens ou em páginas de alguma literatura fadada ao desconhecido. Tanto fazia: tudo inexistia.
As luzes iam se apagando e logo estava protegido pela escuridão total. Tentar enxergar não valia de nada: confundia-me com o fundo de sombra. Pressentia, porém, em mais uma profecia desértica de falso oráculo que tudo aquilo teria um fim. Talvez acertasse – talvez não. Fechei os olhos como quem desiste de pensar. Senti o nosso perfume e Heitor novamente comigo. Agarrei-me ao seu braço e escondi meu rosto em sua nuca para fugir dos horrores projetados na enorme tela do cinema, como um menino com medo da crueldade.